sexta-feira, 13 de dezembro de 2013

"Vem de repente um anjo triste perto de mim"

(Não me dê atenção
Mas obrigado por pensar em mim. - A Via Lactea)

Vou me encarar somente hoje dessa forma. Engasgo.
Engasgo e recomeço.
Há o caos silencioso da sede de um deserto dentro de mim, há ainda a explosão insonora de um relâmpago na escuridão e abismo de um céu noturno. Sinto-me agora, como antes jamais, tampouco como hoje... sinto-me onde não estive, unhas sujas de terra, gosto de acerola, paz de primavera... não... não sinto a paz de primavera. Quero senti-la. E por querer-me tanto, e tanto querer ao externo, nada possuo. Sinto-me como a sacola plástica que escapa das mãos de um estranho e é carregada pelo vento, findará num corredor de água de chuva sem qualquer zelo.  Sinto uma vontade grande de sair por aí e esquecer de quem sou, esquecer até mesmo do esquecimento, me ver livre de qualquer sentimento de dor, perda, ou até mesmo a saudade. Então aquele doce desejo de estar no alto de uma montanha retoma, meus braços e asas e pele – anseiam. Quero fugir. Fugir de quê? De quem? Tudo parece perfeitamente imperfeito. O beijo da morte levou junto com um ser amado algo precioso em mim... abrigo. Tento, tentamos, os telhados já não são fortes para as chuvas de lágrimas que vem me invadir, meus braços já não sobem em tecidos buscando alcançar o céu... forças se vão e esvaem. Não me reconheço como quem sou, como minha familiar não importância com os erros alheios... Sinto dores mortas, sentimentos adormecidos, medo. Penso e repenso em me entregar ao vento que tanto pertenci e hoje me escondo. Não sei quais são meus próximos caminhos, apenas sinto uma vontade imensa de partir... sem destino... sem parada. Apenas me ver a caminho de algo. 

domingo, 20 de outubro de 2013

Ser corr-e-dor

 Era delicado afugentar-se em cores para distrair os olhares, qualquer sentimento ruim se escondia como num quadro, e as pequenas bochechas rosadas se esticavam, crianças em meio ao tumulto das horas em que transitei entre uns e outros ônibus. Descobri anestesia nas cores, viciei-me na sensação de despertar a luz do ser humano e conduzi-lo ao lúdico mundo de vidas que jorram dentro de mim. Hoje sou camaleoa que se veste de canário e sai voar bem alto até derrubar as penas e escolher outro elemento. Hoje sou luz que transpassa o medo de viver a ingenuidade desse mundo de dor, escorro até não sobrar uma gota e me coloco pra secar e crescer ao sol.

 Desvendei o mistério do coração, espetei o meu em espinhos para descobrir que é só uma forma romântica de se dizer que o cérebro sente, e tentei confundir o cérebro de outros que acreditavam no coração para me livrar de sentimentos incompreendidos, mas a crença é quente e mais forte que a frieza... Descobri que não posso ser livre se deter o outro. Congelei-me na frieza e derreti, desfiz preceitos letais, e escolho agora o vento para me levar por onde a arte anda, para purificar, expandir, esquecer dores e ver flores no caminho. 

sábado, 22 de junho de 2013

Monólogo do silêncio


Alojado entre a chama e o balde de água fria, como se pudesse derreter a qualquer momento e então escorrer pra fora desse peito sufocado.  Pode se chamar de cru, e então podre. Acumulado e inflamado como células cancerígenas que mastigam organismos de anos em dias. Para se elevar em efeitos leves, talvez lavar ajude a levar o lixo pra fora. Talvez sucumbir aos desgastes e evacuar as memórias em uma longa diarreia de velas derretidas e dramas rasgando a pele, escancarar os calos e caros enganos e desperdícios de dias a pão de ló e água morna. Nada como um doce para uma criança chorando a toa. Os leitos vazios, se não aquele que abriga o mestre da casa e cobre-o de cuidados tardios e amor regado aos talos, algo que console essa noite calada pelos gritos que se ouve no silêncio. Não acredite nas palavras santas que lhe dizem aos cochichos, os pés dos ouvidos estão mancos e falhos, e a segurança está apenas nas raízes embaixo deles, das que guardam o apogeu do eterno poucas restaram. Encontre-as. 

terça-feira, 7 de maio de 2013

Quase mentira


"..como se fosse uma fruta madura, à espera de ser colhida. É assim que vejo ela, às vezes. Como uma coisa parada, à espera de ser colhida por alguém que é exatamente você. Não aconteceria com outro. Depois, quando ela foge, penso que não, que não era uma fruta. Que era um bicho, um bichinho desses ariscos. Coelho, borboleta. Um rato. É preciso cuidado com o arisco, senão ele foge. É preciso aprender a se movimentar dentro do silêncio e do tempo. Cada movimento em direção a ele é tão absolutamente lento que o tempo fica meio abolido. Não há tempo. Um bicho arisco vive dentro de uma espécie de eternidade. Duma ilusão da eternidade. Onde ele pode ficar parado para sempre, mastigando o eterno. Para não assustá-lo, para tê-lo dentro dos seus dedos quando eles finalmente se fecharem, você também precisa estar dentro dessa ilusão do eterno." (Pela noite, O Triângulo das Águas, p.109.)

 Ele
foi o cego que tateou o prego e a praga até chegar aqui, desvendou os que enxergam e tragou os que transitam em transe, gargalhou em alegria e em miséria, dirigiu os próprios passos solitários e acompanhados de sombras que de repente sumiam na calçada quente. Por muitas vezes comeu o que vomitou de tudo isso para que degustasse mais... até provar o verdadeiro gosto do prazer e do desalento. Dedilhou o tempo com a segurança de quem tem um ás na manga, e com a insegurança de ter perdido o braço.
 
 
 
Quando lhe digo que como o que vomitou para degustar também, é porque quero criá-lo nas veias, cultivar suas dádivas mundanas para meu conhecimento espiritual... E foi bem assim que unimo-nos. Ele socou e abraçou a carne o quanto pôde até que me sentiu, pois era o único que eu, enquanto rato, sabia que estava na ilusão do eterno, e estava num ápice que me absorveu de dentro a fora, então esquecemos os outros caminhos, Meu interno e o externo d’Ele, que não deixavam de ser Meu externo e o interno d’Ele, fundiram-se ao que somos hoje.
Agora como no prato d”Ele com a mesma boca que beija ou a mesma escova que limpa nossos dentes, como no silêncio d’Ele com a mesma garganta que grita e que cala, como nos versos d’Ele com a mesma mão que escreve e acaricia, e como no corpo d’Ele com  a mesma silhueta na parede e no teto... então comemos juntos, assim como sonhamos ou remamos. Encontrei nos olhos dele tanto de Shakespeare quanto de Romeu, tanto de Renato quanto de Gabriel, tanto do Ídolo quanto do arcanjo... me encontrei lá também...
O plano é pisar leve ou bruscamente, esgotar as possibilidades e sentidos e então ver um no outro a pele envelhecer até paralisar, deixar rastros de nossas aventuras para a luz dos céus noturnos, e o sorriso de lembrança no rosto de um neto ou bisneto. “Ser feliz para sempre”.

terça-feira, 9 de abril de 2013

Antes que sufoque


No além do eufórico aforismo, exacerbo em distinção: Que o mundo me engane, mas não me cale, e que as ideias sejam todas contrárias ao abate psíquico. Molestei meus conceitos do julgo ao alheio, infringi leis humanizadas e bestificáveis, hoje rogo e regurgito tudo aquilo que espremi ao estômago laceado de nós socados garganta abaixo, e que em retardatárias fiquem todas as cinzas que sobraram da podridão de certos pensamentos.
Reconstruo-me aqui como o recém-liberto escravo... Correndo para saciar outro tipo de fome senão aquela que habituou entre as costelas.  Em celestial abrangência disforme, corro o risco de sucumbir ao vento, e esquecer até mesmo do esquecimento quando finalmente honrar meus preceitos de apenas sentir. 

domingo, 25 de novembro de 2012

Da humanidade ao fim. 2012.


 Nascemos da semente do porvir, caminhamos no canto ordinário do agora. O sangue alheio escorre nas mãos de um mundo prematuro. A face da maldade outrora foi um bebê febril, e agora é tão forte quanto o choro por fome, e então frágil. As raízes apodreceram e já não há sustento, as extremidades ocupam o espaço. O ser resumiu-se ao corpo e suicidou o espírito. Fez-se volátil o sentido em ter um órgão vital pulsando no corpo.  
Que a destruição fosse uma deixa para a construção e seríamos nobres. Não somos. O caos caminha frente ao abismo, e ninguém nos ensinou a abrir as asas. Revolucionamos o fracasso por desconhecer a única verdade que não nos cruza os olhos. Cruzamos os dedos em outros dedos, os braços em desistência, as pernas no álcool, os corpos em outros corpos e não vivemos nada disso. Cruzamos a vida feito um trem fora de linha com as janelas fechadas.
Anunciamos o fim com um grande cérebro pobre e um pequeno coração miserável. Somos um todo que se partiu em fragmentos de dejeto, sujou o habitat natural do amor e enfureceu os quatro elementos. Fracassamos. E reagimos a isso num grito de gol quando a trave é a trava que colocamos na vida. Escolhemos a morte e a fizemos existir, e agora sonhamos com um próximo fim do mundo para que não tenhamos que admitir que acabamos desde que deixamos de fluir.
A esperança jazia em evolução e regredimos ao ponto de perdê-la de vista. 

terça-feira, 30 de outubro de 2012

Carta de despedida para quem não foi pedida

2012, 24-04. (12h02)

Rejeitamos, por fim, o brinde que foi pago ainda mais caro que a percepção pudesse alcançar.

E a companhia não demora muito a chegar, sua voz causa arrepios que começa nos ouvidos e termina onde não saberemos.
Discretamente sorriu e fez-me lembrar de um conto lido em algum certo livro que já havia fechado. 
"Bom dia, trago-lhe, outra vez, a vítima. Sabes como gosto de agradar aos paladares, não tão bem sentes. Toco a porta dedo a dedo, causando o som suficientemente mais alto que um sussurro. Afirmo-lhe - entrarei."
És tão silenciosa quanto atraente. "Gostaria de possuí-la. Então findar-te-ia de uma só vez".
Tua maldade venda o tempo feito inocência, sabes que somos tão mutantes quanto a própria vida. Só não sabes que nosso abismo guarda uma corda, lembraremos uns aos outros para livrar-nos de ti.
Tu és, eu sei, a dama de branco. Mais donzela impossível, se apresenta numa reverência deliciosamente exposta. Esconde as estratégias do jogo sem usar luvas, brinca de tirar os sentidos. Não a subestimo, não a nego, não duvido de tua força, mas não lhe entregarei os meus pelos seus.
A mente curiosa se dissipa e pede abrigo por golpear o seu próprio. Já não é resplandecente como antes, adquiriu textura fosca e sem vida. Criou uma moldura para sua imagem, logo o caminho é não ter caminho, as ruas perderam a saída sem que percebessemos.
Agora minha mão foi estendida, e tua intensidade haverá de ser mais forte que a minha, e quando for, haverá de ser vida e não morte. Nosso paraíso foi feito de nossos pequenos tamanhos, ainda sim não temeremos os gigantes. Talvez nossa aversão pela grandeza motive a vitória, ou talvez só descobrimos que das alturas a vista é muito limitada, o movimento é difícil. Somos exploradores de nossas trilhas, não aprendemos a render-se ao que nos prende. Nossa lucidez contraditóriamente inebriada mora onde a ti não pertence, e é onde abraçaremos nossas forças que se unem para um claro 'adeus'. E não lhe encontraremos denovo. Nos encontramos.


quinta-feira, 18 de outubro de 2012

A dança entre o ser e o universo


Os dedos estralam numa dança de intervalos que não medem o tempo – mas as batidas do coração. E a vida se propaga. O corpo, cansado de boiar, move braços e pernas e conecta-se à coreografia coordenada pela água, que faz a pele deslizar sem peso algum.
A mente se espalha pela superfície e mergulha, sente um impulso forte, tanto da água quanto do desejo de permanecer ali, mas conhece o caminho de volta e as voltas em mundos que o caminho traz.
A possibilidade de sentir a terra roçar nos pés e os pés roçarem na água  faz com que o corpo e a mente se unam – e que assim possam até mesmo seguir o vento.  
São um todo agora: o corpo, a mente, a terra, a água, o vento, o tempo. E juntos podem alcançar... o que quer que seja.   

terça-feira, 16 de outubro de 2012

Olá... eu!


Eu poderia perfeitamente me dividir em quatro pessoas: todas com suas múltiplas personalidades. Seria quatro elementos, quatro versos, quatro pontos – um final após as reticências.
Eu seria um lago frio numa terra perdida, inexplorado. Seria um livro infantil desabrochado por várias mentes e adaptado a várias realidades improváveis. Seria uma bandeira de paz estendida em tempos de guerra. E seria a música que embala os corpos nas noites.
Dentro disso, eu poderia ser tanto silêncio, tanto tumulto, tanto invisível, tanto extremo.  E sou. Feito a loucura que inebria corpos e mentes libertos. Feito os passos de um velho refugiado nas grades num feriado fora da prisão. Feito as bocas que se calam e guardam as melhores palavras. Feito todas as sensações.
Sou um cego tateando o mundo, sentindo cada possibilidade num novo toque. E hoje, quando me encaro feito num espelho, posso vê-los – aqueles pontos de luz. Estão cintilantes como nunca, e vêm de dentro. 

quinta-feira, 4 de outubro de 2012

Além do preço, da morte e da imortalidade


Estava bêbado. Estava bêbado e via corvos. Tentava reconstruir a imaginação, procurando os braços de amor que eram nada menos que o fim do mundo.  Estava cansado da vida medíocre de ser humano que levava, sendo convencido a querer o que lhe consumia e o devorava com pupilas de cifrão.
Tomou posse da garrafa mais cara do bar e trocou-a por um goró com um mendigo na rua.  Deixou dormir quem fingia e acordou quem sabia ser.  E dormiu aos beijos com as máquinas, sonhando estar nos Estados Unidos.
Acordou com a voz do vento, penetrado pela atmosfera e ferindo o horizonte em um barco à vela. E nessa queda, do corpo à alma, colocou peso na leveza e se foi. De longe podia-se avistar sua pele negra, suas roupas finas – jogadas ao mar.
E ele voava, ainda com a sensação inebriada que o álcool deixara, misturada com o sentido de um corpo boiando numa banheira. A luz do caos se apagou, e acendeu-se a luz da verdade. Desperto do sono, encontrou sua casa, longe, bem longe, da cegueira e das propagandas de televisão. Abraçou-se ao começo do mundo, que de mãos dadas lhe mostrava o fim – assim, como proposta, explicação, unificação, transparência. Assim, como existir. 

Que seja


Em tudo quanto faças sê só tu, 
Em tudo quanto faças sê tu todo.

Cuidado hereditário


Eu olhava para aquele lago escuro e profundo, afogado em si mesmo, refletindo o vazio alheio que mergulhava na terra. Via as montanhas desmoronando, levando junto quem tentava subir, feito pedra rolando abismo abaixo. Eu sentia o vento frio roubando-me o calor da pele, e temia por acreditar em tudo o que via.
Então senti algo varar de meus olhos embaçados, e percebi, naqueles outros olhos, um lago no qual eu poderia ter caído; naqueles ombros um peso que eu não teria aguentado. E deixei o hálito frio transpassar meus dedos, descobrindo vida num corpo morto.
Mas a moldura chamou-me a atenção para a imagem escura que se movia junto a mim. Tornei-me espelho da dor que sentia. Trouxe o corpo do outro ao meu, a vida do outro à minha. Porque não era Outro, mas meu.
Ali eu soube que a doença é o caminho para a cura, e que uma depende irrefutavelmente da outra, se não do Outro.
Levarei a paz à sua mente derrubada, tirarei seu espírito para dançar. E não haverá morte que nos separe. 

sábado, 22 de setembro de 2012

Memória Efêmera


O reflexo embaçado era tão belo, que então constrangedor. O silêncio preenchia o espaço feito um corpo caindo abruptamente na neve. E a fumaça de ar frio tinha voz. Uma voz que tranquilamente chamava pelo nome.
Eu estava lá. E já não temia o medo, nem tremia. Deixava-me levar sem cogitar fuga.  Foi quando vi aquela pele branca e nua, derretendo feito um cubo de gelo. O som rasgava qualquer resquício de um vento mudo, e congelou meus olhos.
O movimento parou. Os olhos estralados derrubavam lágrimas que eu não conseguia ver, mas sentia. A cabeça era leve como um papel voando numa tempestade.
Mesmo distante, eu sentia o toque involuntário daquele corpo, como estar vagando no breu de uma cidade sem energia.
Não me lembro das nuvens, que certamente uniam-se a um centro escuro. Não lembro se eram árvores, ou um deserto que me envolvia naquele instante. Nem ao menos sei se eu era uma estrutura viva, por não me sentir como tal. Foi quando corri em direção àquele corpo - não havia ar por não haver pulmões. Fui me encharcando daquela cena, mergulhando, e quando abri os braços, descobri – sempre estive lá. Era tão outro quanto eu. A água endurecia meus membros, espalhava meus cabelos e fazia-me um ser dissolvido.
Restaram essas gotas de chuva que são meus pensamentos, liberando a água de um corpo afogado que molha tudo enquanto é vida por este lugar. 

segunda-feira, 17 de setembro de 2012

Delito

Saio impune. Desfaleço cada face diante de mim postada, torno-me um corpo vivo e aterrado ao chão, estereotipo a realidade que se cala.
Sinto-me como uma pena desprendendo-se da asa em alto voo, e sigo usando mais os olhos do que os sentidos.
Faço com que eles dancem em minhas mãos enquanto ouço o soluço do tempo que não passa. Gosto do extremo e inverso, peculiarmente quando os passos não alcançam a coreografia do estado e a carcaça humana ganha outra forma.
Saio impune. Somos sós em nós que nos prendem até que pés bambos os soltem.
Saio impune. Deleito sobre o delito e recordo, sem culpa, do ser que se move entre o abismo e o abuso.
Volto livre. Em voos curtos aprendo jornadas pelas quais percorro sem que se precise de movimento, num tornar mente o que é mito. 

segunda-feira, 10 de setembro de 2012

La vita è adesso.


Caro estranho,
a quem dedico estas palavras rasas.
O Ps. vem antes desta vez:
Repare no reflexo da luz na água.

Levante-me precavidamente da precariedade
Cure-me lentamente da sanidade
Pulverize delicadamente minha pele dormente
Deslize em meu corpo, dedilhe minha mente.

E como quem manda,
Lhe peço:
Mergulhe.

terça-feira, 21 de agosto de 2012

Incubado


Reverberava ao longínquo estado célebre, inundado em cores e odores. Pertencia ao acaso, caso houvesse vento e fuga. As vísceras pulsavam enquanto os braços preparavam-se para um mergulho fundo, deixava o sangue queimar na pele fria do rosto, ria morbidamente da própria incapacidade de se pertencer.
Quando os sinos da igreja voltavam ao terceiro período do dia, chocando-se num som estridente, seus ouvidos abriam-se ao som da morte diária. Era corrompido pela crença em não crer, que envolvia seu corpo frágil num grande redemoinho e jogava-o de volta a terra numa armadura fétida e suja, brincando de acreditar que era força.
Levantou-se após os cacos, fez-se no começo do fim. Emergiu das migalhas e impulsionou-se ao arcaico meio de não ceder.
Eu poderia libertá-lo de suas vestes em branco, mancha-las d’outras cores além de vinho. Sua capa seria a capacidade de deixar que o externo e interno sejam uma coisa só, um pouco para dentro e outro para fora. Conheceria a sensação de estar no topo de uma montanha dedilhando o céu estrelado, mesmo quando cercado pelo escuro de um teto feito de insônia. Soltaria os escudos, e escoaria para o mundo. Transbordaria de minha taça mais cara: a de graça, que nos mistura mais que fumaça e oxigênio, naquelas manhãs frias em que a cidade veste-se d’um tom azul e cinza, diluído em poeira. 

 

segunda-feira, 30 de julho de 2012

Naufrágio


Causas desconhecidas.
 Às vezes o navio permanecia décadas afundado sob as impressões e energias do momento pausado em gritos e no silêncio de mentes entre o ápice e o descanso. A música continuava tocando, os corpos se reverberando e os desejos que ficam no ar impregnavam nos cavos da madeira feito musgo. Eram mudas e controláveis as cenas no tempo embaixo d’água.  
 Às vezes o fogo tomava-lhe até desfazer a vida para então cessar, deixando rastros de dentes podres, roupas velhas e redes de pesca.
 Às vezes a explosão colidia a ganância e o medo tirando-lhes o nome e o paladar, onde o insípido não chamava, só faiscava ao salto e apagava na queda em ar já não livre.
 Desta vez as causas eram desconhecidas. O fogo queimava seus remanescentes, seus eixos se chocavam com os de um outrem inóspito e a água cobria-o impedindo, não a entrada, mas a saída do oxigênio, onde seu interior inflava sem explodir.
 O campo de visão era inexato e os olhos caminhavam lentos, longe do corpo de madeira. Distanciavam-se à medida que acreditavam ser uma coisa só ou nada, ou em nadar em uma coisa só. A correnteza roubou-lhe os movimentos. 
 Na pausa entre descargas elétricas via-se jalecos brancos. Vozes cantarolavam: O navio é uma pessoa.
Céus! O navio é uma pessoa que não sabe nadar. E eles diziam: bata os braços, as pernas, respire, levante a cabeça, abaixe a cabeça, mantenha o corpo reto.
 O navio apenas procurava mãos tão grandes que pudessem segurá-lo. Pesado e flutuante, existia para ser o que era, enquanto o tamanho e o peso eram muito mais que matéria física.
 Disse: Não há regras para flutuar aqui.
 E não havia. 

 Sem essa de marchas e de gritar SENTIDO. Já que não há sentido onde não se sente.




terça-feira, 3 de julho de 2012

Carta de amor futurista ou antiquada


Art. 1º
Referente à própria condenação a vida, onde o maior crime cometido foi um sentir ensandecido.
 Declara-se que a visão que se têm é a de fora, que corresponde adentro ao mundo, onde não se culpa a desculpa.
 
Carta ou Tratado (de tratar)
Entrego-me. Permito que me faça em uso de tua lei, que me leve ao acordo entre o que quero e o que farei.
O processo abstém-me a uma fração de frase enclausurada, onde se ressalta que seremos livres e súditos do tempo. A contradição embriagou-me de maneira tão impulsiva ao desejo, que repulsivamente os corpos ocos e sujos de um sangue pisado esquivaram-se – exceto um, que pulsava além do plausível. Era este teu corpo íngreme e dolosamente acessível, contraditório, inefável, que requer enquanto crime que eu me condene a criar estórias para contar-lhe como lhe roubei para minha vida sem que nosso destino caminhe à uma prisão. Este que se fez personagem concreto antes mesmo de deixar de ser o abstrato e quimérico protagonista fantasma de meus contos.
Requeiro a pena mínima de centenas de meus séculos ao teu lado. Mesmo que venhamos a ser galhos ou frutos – desde que haja sombra que nos desenhe, água na boca que nos deguste e devore - e voltemos, tal como o talo e a folha, ou as patas de uma aranha, ou, até mesmo, a silenciosa escuridão. Ofereço-me como de teu domínio, desde que por meio desta (escrito em minha testa) estejamos ao mesmo equilíbrio até que o mesmo não esteja em haver. Que todo som que emitas daí já tenha sido ecoado do aqui que vier a me pertencer. E que jamais nos esqueçamos da pele quando a memória vir a falhar, quando os graus de óculos velhos já não bastarem para enxergar-nos um ao outro. E quando o sol já não lembrar o caminho de volta, estaremos aqui. Não me importa como.
Estendo meus braços, lave-me e leve-me em tua leveza. 


Processo de requisição d’uma esperançosa dama que possui de todas as terras a que vai além da Terra.
1800 e bolinha
Depois do preguiçoso pensar humano

sexta-feira, 29 de junho de 2012

Deixo que a vida lhes fale agora


 Não me vejas mais. Toque-me como puderes onde eu não estiver. Sinta-me num instante de dor, de ódio, de susto – qualquer que seja a parte que eu não fazia.
 Liberte-me de ti como num salto, e como na rotina dos pés ao aterrar-se no chão - prenda-me.
 Não se importe em usar os olhos comigo, mas esteja em mim. Ocupe-se com tua verdade que desocupar-me-ei de disfarçar os fatos e fazer de tudo um jogo.
 Não me pertença – me convença, vença tudo o que eu lhe apresentar como defeito.
 Use-me. Não me deixe para depois onde não existo. Deixe-me escorrer sobre tua história - feito a lágrima que lhe cai tão bem na face.
 Deixe-me abraçar-te e entregar-lhe meus segredos todos. E no fim, quando já não sentir-me e eu vier a lembrar-te de tudo o que se passou, saiba que deixar-te-ei por amor, e é por amor que lhe peço que fique até despir-nos de nós mesmos numa despedida. Precisamo-nos mutuamente agora, com urgência.

Da tua, sempre tua
Vida.

quarta-feira, 20 de junho de 2012

Quem descobriu a (si mesmo)?


Alto, magro e deselegantemente curvado para a esquerda, deslizava os pés, tão silencioso, que parecia mover-se em areia. Vestido em seu esporte fino – aparentemente chutar pessoas – divertia-se com a ciranda de olhares tanto medrosos e tão pouco constrangidos que lhe cercava. 
Fantasiava-se de um vilão malvado e solitário, daqueles que vive num castelo sombrio e cheio de ratos e que todos sabem que não passa de um pobre coitado.
O analista tinha os bolsos rasgados de tanto carregar peso, pesava na mente da família. Por ser o único com um motivo a mais para entrar no jogo, guardou para si a experiência, afirmou-lhes que a loucura era uma doença sem cura, e curou a si próprio com as estórias que ouvia nas tardes em que se acomodava na poltrona e deixava o calor do café suar a cavidade que escorregava do nariz.
Nada poderia ser feito daquele homem que já havia feito tudo.  Desenhou o próprio mundo e deixou a porta em branco para qualquer um que, num simples traçado, viesse a construir uma porta.  E calava-se diante do desespero de nunca ser encontrado.

De louco a velho, de velho a morto e santo. 
“Coitadinho, pelo menos era feliz”.

terça-feira, 19 de junho de 2012

Pés, caminhem!


Quem era aquele humano que se postava ali, diante de mim, como alguém que nunca esteve? Eu me renunciava a pergunta que me incomodava.
Era como se sua mente nunca carregasse um pensamento que atravessasse imagens, e eu nunca saberia o que seus olhos encaravam, se a cadeira em sua frente, os parafusos que seus dedos desenhavam, ou a cor azul desbotada.
E minha mente fantasiosa se limitava em não invadir seu espaço em branco, já que lhe era acusada loucura sem causa e sem remédio em cada vez que tentava descobrir aquilo que ele chamava de amor.
E por pensar demais, eu me fazia assim – encurralada. Ele havia me pego em voo como um pássaro, e me transformado num avião. Impediu-me de sentir o vento a cada bater de asas, e eu jazia triste pelos cantos em sua presença.
Então, sua voz por findou em dizer-me algo: Você não tem expressão alguma.
Agora vejo que minhas expressões ficaram numa máscara de palhaço d’uma noite passada, e de lá não saíram por medo ou numa fuga de não encontrarem casa em meu rosto.
Se nem meu sono me cabe, como caberá o vazio conformado de outro?
Não se paga imposto para morar em si mesmo. Nem se recebe de fora.


Não desisto para fugir de ti, desisto para não fugir de mim.

segunda-feira, 4 de junho de 2012

Ao distante amigo - Humano


Infectaram-se pelo limite do tempo. Que mal lhe pergunte, onde guardam a face de dor que se esconde por trás do assassino e do assassinado? É tudo que de vocês espero, a única expressão espontânea que sei que carregam com o corpo solto e mente sem alongamento.
Escovaram os cílios e ensebaram os cabelos num disfarce egocêntrico de quem não sabe se esconder. Pois não me surpreendem, e de tão fraco o risco já me exponho.
Caminhe até mim, vulto mascarado. Não me engana os olhos, são só tuas ilusões. Vejo que és espelho cercado de outros mais, e que vossa diversão é o reflexo de um passo torto e igual que se estende por entre as ruas deixando o lixo como rastro. Vejo seus olhos estralados acidentando a visão, enquanto os meus vendados contam a história toda, desde a face suando até as marcas de unhas e dentes em pescoços de noites passadas. Desenho-os na última folha em branco de um caderno adormecido na gaveta, para então jogá-lo à lareira e ver a fumaça preta acinzentando um branco até desaparecer.
Permita que minha imaginação os leve agora ao primeiro grito que rasgou o ar e nem se lembram, ao choro de uma criança conhecendo a própria garganta e lamentando por uma última vez uma história passada a não ser lembrada mais. Então dilatem o som do ar de pulmões empoeirados, e recitem tudo aquilo que tem vivido como alguém que canta um hino, num choque entre as mãos e o peito, mostrando a estimada linha que tem costurado seus dias até aqui. Esvaziem as lágrimas de água velha e podre reservada para um choro falso, e deixem a fragilidade do novo voltar a pulsar. Emprestem-me os olhos. Emprestem-se os olhos. Precisamos agora e para sempre das histórias que se escreverão com essas pupilas limpas.
Escrevo-te, Humano, a fim de falar-nos. De dizer-nos algo que ultrapasse o sentido e alcance a ação, sem pensar. De encontrar outras para minha coleção de expressões espontâneas. Porque não as tenho visto. Porque, ou meu sentir já não é aguçado, ou já não provocamos mais os sentidos, já que tudo é repetição e ensaio.

domingo, 3 de junho de 2012

Por um imprevisto já previsto


Dizem que a mente tem o poder de concretizar situações



E no deleite de nossos corpos, que eram fotografados pelas luzes coloridas, já não cabia um abraço. Os braços foram estendidos para distanciar o acúmulo de desejos que se escondiam. E eram tão secos e frios quando se moldavam em aconchego, que ninguém descobriria - por mais que soubéssemos como trocar todos os braços e todas as pernas e todos os corpos de lugar para uma sensação perfeita e um desfecho mais aberto, como uma hora estendida dos segundos que seguem à descida de uma montanha russa.
Quando a música acaba, a cena nos despede sem permissão, e nossos olhos entregam o que não findamos. Eis nosso desastre e nossa fuga – não concluir o ato que como num ciclo pertenceu-nos aqui e agora, e não seria de outro jeito, e não deixaríamos de esperar que assim fosse.
Tuas mãos apontaram-me feito um sussurro quando tudo já silenciado.  Não me toque, não me toque outra vez porque o mundo não é nosso. Não somos feitos de um corpo que esfarela. E essa ideia de que ser é estar quase nunca nos convém, e ainda menos quando vejo teu casaco agasalhando a crueza de um corpo nu que já não é feito d’outro, mas por outro. E que tua aura é tão grande sobre a dele, que não se vê mais nada por aí, e ficamos vazios por aqui, com a alma solúvel e um desencanto escancarado.
E num basta estaremos distantes outra vez, como se mesmo quiséssemos. Desfaz-se aqui um castelo de poeira construído por uma tempestade de areia. Que o vento leve tudo aos ares e não nos deixe ressecar. E o sol há de queimar minha pele, corar a palidez natural e decorar feito piso velho, até que numa outra volta talvez voltemos a dividir um mesmo tempo.
Agora as estrelas pedem que as siga, e que se encontre num lado oposto ao seu mundo para poder ver as luzes que deixou para trás e que guardarão seu caminho de volta, num sempre que talvez nem exista, assim como o pecado, ou a certeza de um anseio.
Wave goodbye
Wish me well